Em busca de um morango mofado: a saga de Michel Rodrigues no Rio de Janeiro
Palavras-chaves: artigo de Rúbio Rocha, livro Riviera, Rodrigo Melo
Por Rúbio Rocha.
[…] nossos sonhos servem para compensar, em certa medida, a ausência acidental de “alimento” durante o dia.
Friedrich Nietzsche[1]
Neste ano de 2020, o ótimo contista ilheense Rodrigo Melo publicou o seu primeiro romance: “Riviera”. Como em seus contos, nessa maior narrativa, o agora também romancista atou com muita agudeza e sensibilidade duas pontas de viés bem diferente um do outro: o bom humor e o lirismo. Trata-se, pois, de uma mistura de riso e pranto, proeza não tão fácil de ser tecida. Apropriando-me das palavras de Marcus Borgón, que assina o lúcido texto presente nas orelhas do livro, ao ler tal obra, senti-me lançado “à aventura de trilhar caminhos e trechos de inegável beleza e insondáveis perigos.”
O título, “Riviera”, remete à região do sul da França. Mas, a meu ver, na obra do aludido escritor, trata-se de um lugar romantizado, um tanto idealizado, o paraíso no qual o personagem Michel Rodrigues julga que irá morder e sentir o inefável sabor da glória e da plena felicidade amorosa. Ou, de modo análogo, poderemos entender Riviera como um lugar concreto, mas a cujas cores reais juntam-se os matizes de devaneios inebriantes.
Só a título de curiosidade, o personagem Michel possui no sobrenome “Rodrigues” a sombra do prenome do autor, Rodrigo. Esta espécie de jogo linguístico mostra a “ascendência” do anti-herói, supondo na narrativa a existência de tons autobiográficos. Mas isso não terá a menor relevância em qualquer juízo crítico acerca da obra em tela, que é muito bem construída, apresentando um encadeamento urdido por mãos demasiado hábeis. A propósito, este ensaio centrar-se-á em duas ações paralelas: resumir o romance e tecer uma análise crítico-interpretativa.
Levando no bolso o inferno, mas no coração o céu, Michel chegou ao Rio de Janeiro em um ônibus, mordendo o último sanduíche de mortadela. Com a alma acalentada por muitos sonhos de felicidade, o parco dinheiro que leva consigo não o inquietava. Apesar de só saber que a moça por quem se apaixonara morava em um prédio com pilotis brancos em Copacabana, e de só ter dela um enganoso número de telefone fixo, Rodrigues desembarcou no Rio já convicto de que a reencontraria. Espécie de Ulisses às avessas, Michel empreendeu uma odisseia atendendo aos ímpetos de seu ingênuo coração.
Logo em sua chegada, a capital carioca, ironicamente, ecoou em seu céu o estado de espírito do anti-herói: “o céu rebentava em uma mistura de azul claro, cor de rosa e laranja”. Depois de chegar à rodoviária, partiu em um táxi para a Zona Sul, o paraíso da paisagem urbana do Rio. Durante o trajeto, com um sorriso no rosto, Michel fabulava em seu íntimo uma conversa com o taxista, antegozando a glória da qual logo se apoderaria: “Siga em frente, ó, contrafeito taxista — Michel pensou —, uma vez que todo homem tem direito à glória e estou prestes a alcançá-la.”
Algum tempo depois, ele chegou ao Hotel Realeza, onde, no letreiro, “faltavam o H de hotel e o R de realeza”, particularidade que já apresenta o tom da ironia. No saguão, percebeu a decrepitude também em seu interior. Aguardando a chegada do recepcionista, demorou-se um pouco em olhar uma miniatura do Cristo Redentor que tinha os braços muito curtos. Rodrigues chegou na capital carioca como um soberano chega a um território alheio para anexá-lo ao seu império. Mas, no hotel, à sua frente, havia apenas “um velho e empoeirado tapete vermelho” para recepcioná-lo. Nada mais metafórico para ilustrar a chegada de um rei às avessas, que, ao invés de colher os despojos de uma futura conquista, seria saqueado por aquela cidade que, inicialmente, lhe sorrira. Michel, este personagem quixotesco, durante a narrativa, será tão-somente um rei de si mesmo, mas um rei que possui dentro de si um tesouro: um coração cheio de fibra, esperanças e sonhos.
A conjuntura física do hotel com seu cheiro de mofo e o desagradável cheiro de suor do taxista, certamente, prefiguravam os amargos dias vindouros. Portanto o início da narrativa já se encontra prenhe do infausto desfecho: o odor do suor que sentira pressagiava dias de muitas agruras físicas; o mofo pressagiava a decomposição do “amor” de Sandra D’Angelo, a poeta amada do nosso anti-herói. De mais a mais, levo em consideração ainda um fato aparentemente banal que ocorrera antes de Rodrigues mergulhar no sono em sua primeira noite na Cidade Maravilhosa. Mais oportunamente, colocarei tal acontecimento exposto à luz.
Sobre os dias vindouros, Michel já os via dourados. Logo no dia seguinte de sua chegada, foi acordado pelos raios de sol que reverberavam em seu rosto. No primeiro café da manhã, ele “sentia qualquer coisa diferente, uma espécie de eletricidade a exalar do corpo.” Sentia-se bem no Rio, como se estivesse em sua cidade. Começou até a imitar o sotaque carioca da moça do caixa. A eletricidade que exalava de seu corpo comungava com os raios que exalavam do sol; a beleza do seu coração em flor comungava com a beleza daquela cidade.
Só faltava encontrar a sua amada. Pôs-se, então, a procurá-la por toda Capacabana. Em uma de suas buscas, julgou, certa noite, encontrá-la no Ville Noir, um renomado restaurante. Estava acompanhada de um cara bem forte. Dirigiu-se até a ela e a insultou, indignado. Porém, de súbito, percebeu que havia se equivocado e que não se tratava da mulher que amava. O castigo veio a reboque: o brutamontes desferiu-lhe um soco no rosto. Felizmente, o gerente do estabelecimento pôs cobro à briga entre ambos. Humilhado, Rodrigues pôs-se a retornar para o seu hotel, diante do qual sentou-se em um meio fio. Uma morena passou, ele lhe pediu um cigarro, e ela debalde lhe ofereceu também diversão. No final, atuando como um tipo de quiromante, a morena leu a sua mão, desvelando a sua alma, e assegurando-lhe, por último, que “tudo acabará sendo um preparativo para o momento maior.” Ao ouvir isto, o anti-herói, semelhantemente a Macabéa, sentiu-se mais ainda — é provável — uma pessoa “grávida de um futuro.”[2]
Contudo os dias foram se escoando e o entusiasmado Michel, malgrado tivesse procurado a sua amada como agulha em palheiro, não a encontrou. A grana que tinha também foi se escoando, razão pela qual procurou e encontrou um emprego em uma imobiliária para, assim, assegurar a sua subsistência. Teve que tentar se virar, já que, diferentemente do coração, como pondera Nietzsche, “a fome […] não se contenta com alimentos sonhados”.[3]
Durante suas andanças como captador de imóveis, conheceu a proprietária de um apartamento, uma mulher já na casa dos cinquenta anos. Uma atração mútua desencadeou-se, eles começaram a se beijar e uma desejada relação sexual se anunciou. Mas eis que a coroa se desprendeu de seus braços e explicou que não conseguiria transar com o retrato dos pais à parede, olhando-a. No entanto Rodrigues absorveu bem a situação, afinal “tudo o que vivemos é apenas um preparativo para o momento maior”.
Não durou muito e sua experiência como captador de imóveis resultou em malogro: após muitos tropeços, deu um passo firme, mas, justamente nesse passo acertado, foi ludibriado por seu patrão, que não lhe pagou uma boa comissão pela venda de uma cobertura. Michel Rodrigues mais uma vez estava próximo de colher um bom fruto, mas isso ficou “a um passo de acontecer”.
Acossado por dificuldades financeiras, o anti-herói, decidindo fugir do hotel sem pagar a conta, foi para a próspera casa de sua tia, esposa de um piloto de avião aposentado, que morava no bairro Maria da Graça, Zona Norte do Rio. Durante esse trajeto da Zona Sul para a Norte, Michel conheceu o inferno da paisagem urbana e social do Rio: “pequenos prédios com paredes pichadas e manchadas pela fumaça das descargas dos cargos, viadutos que funcionavam de lar para dezenas de pessoas, botecos falidos, bancas de jogo do bicho” e “toda aquela gente que vivia nas sombras dos cartões postais, enchendo filas, morrendo nas ruas e em corredores de hospitais.”
Chegando ao lar da “altruísta” tia, descobriu que a casa em que ela morava não passava de uma espelunca situada em um bairro bem pobre e feio. A casa apresentava rachaduras na estrutura, jardim com roseiras murchas, telhas quebradas etc. Ademais, a tia não era casada com um piloto de avião aposentado, mas com um senhor que atingiu o auge sendo motorista de ônibus.
Deste modo, as promessas de paraíso vão, aos poucos, perdendo as suas cascas douradas e revelando-se mentiras. O quarto em que morava no Hotel Realeza tinha cheiro de mofo, paredes desbotadas com infiltração, teias de aranha e poeira. Na casa da tia, ocupou um bangalô que ficava nos fundos da casa. Um bangalô em cujo banheiro a descarga da privada não funcionava. Assemelhava-se mais a um depósito, onde havia camas desmontadas e armários cheios de cupins, livros com traças e garrafas vazias. Com isso, concluímos que o Hotel de onde Rodrigues saíra, sendo um pequeno inferno, fora apenas um preparativo para um inferno bem pior. Os dois pombos, um preto e um cinzento, parecendo duas gárgulas, vistos pelo anti-herói sobre algumas telhas quebradas, já simbolizavam o que viria pela frente. Com isso, os fatos, à medida que a narrativa vai avançando, vão destecendo as promessas, negando a voz que insiste em reboar ao longo da narrativa: “E tudo acabará sendo um preparativo para o momento maior”.
Após inúmeros dissabores na casa da tia, Michel conseguiu um emprego em uma empresa de Muncks. Nesta, viveu momentos muito ruins. Contudo, assim como na Zona Sul a “natureza cantava, mesmo em meio a todo o concreto”, o coração de nosso anti-herói ainda cantava mesmo em meio a todo aquele concreto que revestia a alma das pessoas que o cercavam. Finalmente, as coisas melhoraram para ele, a ponto até de transar no escritório com Arlete, a secretária da empresa. O sexo anunciado com Lúcia, a coroa do apartamento da Rua Ayres Saldanha, que fora o preparativo não para o momento maior, mas para um momento melhor, finalmente concretizou-se com Arlete. É óbvio que esta não era a sua amada Sandra D’Angelo, mas o seu sexo com ela poderia ser um ensaio para o grande momento. Porém, quando, então, tudo parecia estar assentado, Charles, o seu patrão, flagrou ambos transando, motivo pelo qual Rodrigues foi demitido.
No Rio de Janeiro, nosso anti-herói vivenciou todo tipo de peripécia para sobreviver materialmente e, assim, poder continuar nutrindo o sonho que o levara até ali. Essa sua saga lembra um pouco o destino de Sísifo: este fora condenado a rolar uma grande pedra de mármore até o cimo de uma montanha; mas, quando estava bem próximo de cumprir seu encargo, a pedra sempre retornava montanha abaixo. Rodrigues, de modo análogo, sempre ficava a um passo de apanhar a felicidade, quando, a partir de então, esta se transformava em vapor. E ele, senhor de uma inquebrantável renitência, retomava o seu árduo labor. Talvez, por consolo, lançou mão ora de mentiras, ora de devaneios para maquiar a realidade que se lhe afigurava tão adversa.
A vida de Michel é constituída por um sem-número de vivências e sensações bem antagônicas. Talvez o exemplo mais ilustrativo seja este, o de uma pessoa que, em um determinado momento, sente “que levitava sobre o chão”; e, em outro, sente-se tragado para baixo: “Uma sensação esquisita lhe veio – a de que aquele meio fio era na verdade uma areia movediça e que aos poucos ele seria sugado e desapareceria sem deixar vestígio algum.”
Falando em areia movediça, o anti-herói, uma vez demitido e embora só tendo na carteira alguns minguados reais, resolveu abandonar a casa da tia e fazer o caminho de volta à Zona Sul. Chegando em Copacabana, presenciou um arrastão, sendo, inclusive, vítima de assalto e espancamento. Pela primeira vez, descobriu na prática que os demônios também visitavam o paraíso. Em mais uma ocasião, a máxima de que tudo é um preparativo para o momento maior foi jogada por terra, pois a máxima que impôs mesmo a sua voz foi a de que tudo era um preparativo para o momento pior: na mesma Copacabana em que havia levado um soco no rosto de um indivíduo corpulento, foi objeto agora de um sem-número de agressões desferidas por uma horda de criminosos.
Com o corpo cheio de hematomas, o jovem que chegara ao Rio sentindo-se um Alexandre Magno, já tendo, inclusive, “desbravado o universo, descoberto segredos e desvendado mistérios”, parecia mais um Rei Lear. Ergueu-se e se dirigiu para o Realeza. Mas quem era esse rei? Com a palavra o narrador: “era Michel Rodrigues, um absurdo vindo de longe, uma alegoria a carregar, para todo lado, a sua estropiada fábula sobre a vida e o amor.”
Entrando no saguão do hotel, o anti-herói notou novamente a miniatura do Cristo Redentor com os braços curtos. A ênfase nessa miniatura, a meu ver, dilata o seu horizonte semântico, pois, além de objeto decorativo, símbolo do Rio de Janeiro, serve também para metaforizar com os seus braços pequenos o completo abandono em que Rodrigues se encontrava. O Cristo não o enlaçou em seus braços, não o presenteou com a glória pela qual ansiava.
A única coisa que Michel alcançava bem era o terceiro andar do seu hotel. Dessa vez, não foi diferente, subiu até ao seu quarto, o 305, e pensou em pedir uma grana emprestada a Buade, um francês que morava fixo no mesmo andar e que lhe havia sido bem simpático. Só que, através do recepcionista, tomou conhecimento de que ele havia sido tragado pela “voluptuosidade do nada”,[4] para tomar de empréstimo uma expressão de Machado de Assis. Com isso, Michel chegou ao fundo do poço.
Ironicamente, quando tudo lhe parecia perdido, um golpe de sorte foi em seu socorro. Se o Cristo Redentor tinha ao braços curtos, o acaso lhe estendeu os seus braços longos: Rodrigues descobriu casualmente que, atrás da fotografia emoldurada de uma praia da Riviera francesa, havia vinte e três mil euros do falecido Buade. Apossando-se desse dinheiro, passou a circular na Zona Sul como um playboy e uma “coisa perto da serenidade o alcançou.” Faltava algo, faltava Sandra D’Angelo, faltava o último passo para que a serenidade total fosse conquistada.
Não demorou e o anti-herói retornou ao restaurante Ville Noir, mas agora cheio da grana e isso, creio, pareceu-lhe confirmar a máxima de que tudo é um preparativo para o momento maior: no restaurante, comeu o mesmo prato e bebeu o mesmo vinho caro, entrou e saiu como um cliente digno daquele lugar.
O benevolente destino acenaria uma outra vez para Michel. Certa noite, passando pela porta do Picardia Night Club, onde havia ido com Buade há pouco mais de um mês, resolveu entrar. Lá, para sua surpresa e grande alegria, reconheceu na dançarina Florbela Paz a sua amada, a poeta Sandra D’Angelo. O momento maior, finalmente, depois de ser tão bem preparado, iria acontecer. Michel tentou desesperadamente conversar com ela e chamar a sua atenção para que o percebesse ali, mas os seguranças não o permitiram. Lembrando-se de uma saída que havia nos fundos, correu alucinadamente até lá. Chegando, ainda viu o seu amor entrando em um veículo. Ele Entrou em um táxi e pediu para que o taxista seguisse o Monza da frente. Chegando ao bairro da Gamboa, o Monza parou, Sandra e o companheiro desceram. Vendo-a apanhar e ficar jogada ao chão sozinha, Rodrigues correu até ela, que logo o reconheceu. Encetaram uma conversa e o sempre apaixonado Michel prometeu-lhe morarem juntos na Riviera, ofereceu-lhe o mundo que enfim havia conquistado. Mas ela respondeu que já tinha a sua Riviera — esta, claro, bem assentada na realidade —, e explicou-lhe que o caso fugaz que tiveram não havia passado de uma boa aventura. Ocorrera com ele, mas poderia ter sido com qualquer um outro. Foi deste modo que o nosso anti-herói descobriu que o sentimento de sua amada não passava de um morango mofado. Foi desse modo que ele conheceu o pior de sua “zona norte”.
Quando lhe pareceu que, por fim, apanharia o pássaro raro de plumagem encantadora, este voou fugindo-lhe das mãos ainda mal fechadas. Essa iminência de lograr um bom êxito nas situações mais díspares ora se desfez, ora se refez ao longo da narrativa. Lembra Machado de Assis, quando, evocando o mito de Pandora, escreveu:
Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.[5]
Sandra D’Angelo fez Rodrigues compreender, para engenhar aqui mais uma metáfora, que tudo o que eles viveram não havia passado de um cigarro já fumado e jogado ao chão. O que restava ainda era “apenas a fumaça de algo que nunca havia sido tão sagrado ou genuíno quanto pensou ser.” Michel, agora cheio da grana, esteve ali diante da mulher amada que fora agredida pelo companheiro, propôs-lhe tudo: encontrava-se a um passo da concretização de sua fábula amorosa. Mas, como tudo, quedou a um passo antes de acontecer. A sua Riviera foi reduzida a uma “Pasárgada”. A máxima da quiromante, segundo a qual tudo é um preparativo para o momento maior, no final do romance, rebentou completamente, exalando o seu cheiro mofado de ironia. Na literatura, esses encontros com cartomantes ou quiromantes quase sempre redundam em desditas e desfechos até trágicos para os seus personagens centrais. Limitemo-nos a dois exemplos: o do conto A cartomante, de Machado de Assis; e o da novela A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Rodrigues, tendo menos azar, ficou apenas no terreno do drama.
Atendendo ao chamado do seu agressor, Glória se dirigiu para a sua “Riviera” e com ele entrou no prédio em que, provavelmente, morava. Combalido, Michel ainda ficou parado a ruminar sobre tudo aquilo. Talvez ainda continuasse a ser um rei de si mesmo, mas teria evitado que o tesouro que guardava no coração fosse pilhado pela cruel frustração? Não sabemos se o rei sem reino perdeu a crença na fábula da vida e do amor, muito embora, nas inúmeras janelas acesas dos prédios, ele ainda continuasse “a avistar a poesia e a grandeza de estar vivo”, talvez porque “é preciso genialidade para tudo, inclusive para o martírio”.[6] Ocorre que, antes disso, ele já havia chegado a esta conclusão nada esperançosa: “viver é uma eterna preparação.” Pois bem, a dúvida ficou instaurada. Nas histórias de Rodrigo Melo, a exemplo de muitos contos de Tchekhov, o ponto final quase sempre tem um significado de reticências. Ou, no mínimo, o ponto final é um preparativo para uma coisa maior: três pontos em sequência.
O destino sorriu para você, Michel. Mas essa generosidade dele não foi nada além do que mais um logro. Foi como oferecer um bonito sorvete a uma criança de olhos cintilantes só para, depois, tomá-lo da boca. O seu tio Pedro já havia aprendido essa lição: “Pra viver a gente tem que arranjar motivos. E a esperança sempre foi mais uma armadilha para mim.” Isso, claro, faz coro com o que escrevera o maior escritor brasileiro referindo-se novamente ao mesmo mito: “Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens.”[7]
Mas, afinal, quem era Sandra D’Angelo? Quem era esta mulher que tinha “anjo” no sobrenome? Era apenas um nome postiço usado por Glória, era apenas um anjo caído. E caída ao chão ela estava, após ser agredida pelo seu homem, quando Rodrigues se projetou até a ela: “[…] o homem girou o braço e a estapeou. Sandy caiu no chão […].”
Quando chegou ao Rio, Michel estava convicto de que, como “todo homem tem direito à glória”, ele estava “prestes a alcançá-la”. Mas a sua glória, meu caro Michel, tem G maiúsculo e esta você não a alcançou. Enquanto você, com a sua voz aveludada, referia-se a ela como a sua “poeta”, alguém gritava chamando-a de “puta”. Só posso crer que se tratava justamente dela quando, deitado em seu quarto, na primeira noite de sua chagada ao Rio, o nosso anti-herói ouviu alguém bramir: “Glorinha, sua puta, eu ainda amo você!” Eis aqui a luz que prometi acima.
Falando em primeira noite, lembremos que o recepcionista Sóstenes, quando conduziu Rodrigues ao quarto 305, colocou na fechadura seis ou sete chaves antes de encontrar a chave correta para abrir aquela porta. Michel colocou todas as chaves que tinha em mãos para abrir a porta de sua felicidade amorosa. Mas, diferentemente da penca de chaves do funcionário do hotel, a sua não tinha a chave do seu miraculoso “quarto”.
Como já foi exposto, a trajetória do personagem na capital carioca foi marcada por uma sucessão de coisas e situações que se inverteram constantemente. Por isso, para evocarmos aqui o “José” de Drummond, quando, no final do romance, Michel encontrou a chave — a bolada de euros e o encontro casual com a sua amada —, não havia mais porta. E agora, Michel? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer ir para Riviera, Riviera não há mais; está sem a sua amada, está sem discurso, afinal “não lembrou de nenhuma das frases que havia pensado quando caminhava pela Atlântica”; está sem carinho, já não pode beber, pois sente-se “nauseado pelo Martini”; o riso não veio, a utopia até que veio, mas tudo acabou, tudo fugiu e tudo mofou como o Hotel Realeza. E agora, Michel? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sozinho no escuro, qual bicho-do-mato, sem teogonia, até sem parede desbotada para se encostar, você apenas olha para as “janelas acesas dos prédios à noite”. Quando chegou ao Rio, na primeira noite, nosso anti-herói tomou um banho de água fria em seu quarto de hotel. Quando, no final do romance, finalmente reencontrou a sua poeta, foi seu coração a tomar um banho parecido.
Depois de alguns minutos mergulhado no vazio de onde tinha os pés, o sonhador Rodrigues pegou o mesmo táxi de volta para Copacabana. E seu coração assemelhava-se à fachada daquele Hotel Realeza. Se ainda havia a esperança na fábula do amor, certamente, faltava-lhe, agora, pelo menos algumas “letras”.
Michel não era mais aquele homem feliz que levitava, era um homem soterrado pela mais terrível decepção. Encontrava-se sentado em um banco do táxi, mas não mais como quando chegara ao Rio. O táxi seguia para Copacabana e a natureza, indiferente, continuava cantando como sempre mesmo em meio a todo o “concreto” que esmagava os sonhos de Rodrigues.
Quando chegou à Cidade Maravilhosa, arrastava consigo um certo inferno financeiro, mas tinha no coração um verdadeiro paraíso, onde o sol brilhava imponente. No final do romance, dá-se justamente o contrário: Michel saboreia o paraíso financeiro, mas tendo no coração o inferno da desilusão irrevogável.
Disso tudo, resulta a conclusão de se trata de um romance muito bem elaborado, daqueles cuja gestação foi de nove meses. Há, nele, criações metafóricas bem sutis. Há, portanto, muitos fatos cujos significados são imediatos; por isso, apreendidos no ato da leitura. Porém, ao mesmo tempo em que se revelam incontinente, ocultam conteúdos metafóricos que podem, por assim dizer, ser nomeados de “metáforas silenciosas”. Estas só se tornam passíveis de audição muito tempo depois de sua leitura, quando, em páginas bem mais adiante, podem ser relacionadas com outros fatos e situações.
O narrador, com muita destreza, captura o leitor logo nas primeiras páginas e infunde nele a apreensão pelo reencontro entre Michel Rodrigues e a sua Sandra D’Angelo. O reencontro que parece que vai ocorrer algumas páginas mais à frente, passa a ser protelado e o narrador vai arrastando consigo o leitor apreensivo e tenso. Em momento algum, essa ânsia daquele que lê esboroa-se ou, sequer, arrefece. O mais eficaz recurso empregado pelo autor a fim de conduzir o afã e a tensão do leitor até o final é a frase “tudo é um preparativo para o momento maior”. Frase esta que, como já exposto, ecoa ao longo do texto e vai se enroscando nas várias situações que se sucedem na narrativa. Se, em seu livro de crônicas, publicado há poucos anos atrás, Rodrigo Melo ficou “jogando dardos sem mirar o alvo”, no romance aqui analisado, ele jogou os dardos sempre mirando o alvo.
O nosso anti-herói só teve direito a um empoeirado e vetusto tapete rubro, mas eu, como leitor, julgo ser muito justo estender ao autor de “Riviera” um tapete vermelho bem novo. Com os meus longos braços abertos, saúdo-o, Rodrigo Melo, por esse belo romance! Romance que pode ser, quem sabe, um preparativo para um outro mais belo ainda.
[1] Frase que se situa no aforismo intitulado “Viver e imaginar” da obra Aurora.
[2] Frase da novela A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.
[3] Frase que se situa no aforismo intitulado “Viver e imaginar” da obra Aurora.
[4] Frase da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo VII.
[5] Trecho da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo VII.
[6] Frase da obra As Afinidades Eletivas, II Parte, Capítulo XVIII, de Goethe.
[7] Ibidem.
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