Por Mohammad Jamal.
Nunca vou esquecer o horror que congelou minhas glândulas, quando a palavra funesta cicatrizou em meu cérebro vertiginoso. Andei desorientado pelas ruas como um homem com concussão. A cena que assisti teria destruído minha sanidade? Eu estava em pé à porta do Palácio, quando suas hemorróidas explodiram no carro e se enroscaram na roda traseira do carro em movimento. Chocante ele ficou completamente estripado, deixando para trás uma carcaça vazia, ali sentada no estofamento em pele de canguru do carro. Ate os olhos e o cérebro, se foram com um barulho horrível; um plóft, como o sacar duma rolha numa garrafa de vinho.
Não sei se já escrevi aqui mesmo sobre a história do político que ensinou o ânus a falar? O momento é oportuno, embora as campanhas já estejam no fim, graças a deus… Cena: O abdome dele mexia-se para cima e para baixo e ele peidava palavras em um som borbulhante, denso, estagnado… Um som que dava para cheirar sua impregnável estilística retórica intensamente sulfídrica.
O homem trabalhava na campanha de alguém. Aquilo começou por ser um novo número de ventriloquia onde promessas e atributos eram peidados em praças públicas emanando promessas inexequíveis e loas factoides exorbitadas ao candidato promitente. E ia dando certo. O candidato crescia a cada dia nos índices das pesquisas de intenção de voto.
Só que depois um tempo, incompreensivelmente, o eloquente ânus discursivo, personagem mais importante no marketing político, começou a falar sozinho; imagina! O “dono” entabulava um diálogo político-ideológico nada preparado, e o seu ânus respondia às piadas sobre outros políticos e às conjecturas ideológicas com risível e sarcástica ironia. Um ânus controverso, opositivo, crítico e contestador. Uma ameaça convincente e de verve proselitista e cooptativa, que peidava frases intelectualmente complexas difíceis de contestar.
Eram evidentes os avanços do ânus no campo da psicologia das massas e em termos de filosofia pura. Como um nascituro excepcional, ele evoluía de médio apedeuta semiletrado, para um profundo conhecedor dos aspectos sócio-comportamentais, dos processos reativos como se um exímio intelectual, profundo conhecedor da sociologia e política porem, nada kantiano. Não demorou muito, algum tempo depois, o ânus desenvolveu uma espécie de dentição espessa e áspera, que transpareciam ganchos virados para dentro, como anzóis; e começou a comer com alguns indícios de bulimia latente. Comia muito.
No início, o “dono” achou uma piada e, incauto, irresponsavelmente fez ate um número com aquilo. Um farto banquete; uma comilança a publico onde o ânus insaciável comia glutão. Mas o ânus também lhe comia às calças em público e, também começou a falar na rua em voz alta, aos gritos sobre igualdade de direitos; corrupção, socialismo. Também se embebedava com cachaças baratas e tinha frequentes acessos de choro convulsivo, porque ninguém gostava dele, ninguém o amava; e ele queria ser beijado como sucedia a outras bocas. No fim, falava o dia todo, noite e dia sem parar, numa evidente e paroxística crise existencial. Não era incomum ouvir-se o homem gritar com ele para se calar, a quarteirões de distância. E batia-lhe com o punho fechado e enfiava-lhe velas e enemas para dentro, mas nada resultava em fazê-lo calar-se.
Então, no auge duma dessas crises existenciais, entre queixas e imprecações intermináveis; o ânus fez uma pausa e, insurgentemente, lhe disse finalmente em tom peremptório, alto e explicito: _ “No fim, quem vai se calar é você, não eu; porque eu já não preciso mais de ti. Posso falar e comer e cagar!”.
Depois disso, estranhamente, o “dono” começou a acordar com uma gelatina viscosa e transparente como a cauda de um girino, espalhada ao redor da boca. Ele arrancava aquilo da boca e os pedaços colavam-se às mãos como uma gelatina de gasolina, um napalm a arder e alastrar-se incontrolavelmente; então a boca acabou por ser selada por aquilo. E a cabeça dele a murchar e caiu espontaneamente, exceto os olhos, que ficaram dependurados. Está vendo? Era a única coisa que o ânus não conseguia fazer era ver, enxergar, vislumbrar as cores e os rostos do seu cotidiano existencial. Precisava olhos.
Na cabeça estranhamente diminuída em seu tamanho e volume; feições deformadas, as ligações nervosas estavam bloqueadas, infiltradas e atrofiadas; e o cérebro já não conseguia dar ordens ao corpo onde se inseria o ânus revoltoso, um talibã radical. O pensamento racional já irreflexivo, as reações simpáticas e parassimpáticas estavam presas dentro do crânio, selada por aquela gosma vítrea. O “dono” estava finalmente catatônico.
Durante uns tempos o ânus conseguia ver o sofrimento silencioso e impotente do cérebro, por trás dos olhos. E por fim, o cérebro deve ter morrido porque os olhos se apagaram; havia tanta vida neles como nos de um caranguejo depois de pescado e cozido numa caldeirada.
Ainda guardo na lembrança o enterro por partes do que sobrou daquele ser que prometia mundos e fundos, que não limitou esforços nem critérios, a ponto de deixar o próprio ânus predominar magistralmente sobre ele, “o dono” e as massas, com seus discursos programáticos, sua promessas utopistas, suas quimeras eleitoreiras, sua demagogia filosófica.
Finalmente reconheceram-no grande, imensamente inteligente, eloquente e intelectualizado para permanecer em nossa pequena cidade litorânea. Agora ele está em Brasília; pelos próprios méritos!
Ainda sinto na lembrança o cheiro indelével das suas palavras. Alguém peidou aí?
Kafka, um dos meus mais admirados escritores, foi o enigma do imprevisível na literatura. Com ele nada sequer transparecia ser minimamente aquilo que imaginávamos. Quer conhecer o grande ser humano que foi Kafka? Leia “Carta ao Pai” dele. Suas relações familiares, um ser humano impar.
Mohammad Jamal é escritor e colunista do Ilhéus Comércio.
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